/Por Erwane Kaloudoff
Os grandes vinhos são produzidos em regiões do mundo em que as uvas amadurecem e são colhidas na época mais seca do ano, com dias ensolarados e noites frias – fator essencial para obter frutos de qualidade. Tanto no Hemisfério Sul quanto no Hemisfério Norte, a colheita acontece durante o verão. Em um clima tropical como o nosso, a videira cresce continuamente, sem fase dormente.
Ela é tradicionalmente podada em agosto, brota em setembro e floresce em outubro. O amadurecimento das bagas inicia-se em dezembro e a colheita decorre entre janeiro e fevereiro, com temperaturas elevadas, amplitude térmica baixa, chuvas intensas e solos úmidos. O resultado: uvas com baixo teor de compostos fenólicos, maturação raramente bem-sucedida e sumos muito diluídos.
Uma ideia genial: inverter o ciclo da videira
Para driblar o problema, na região de Minas Gerais, um homem – Murillo de Albuquerque Regina – mudou o jogo. Apaixonado por vinho, amante de sua região mineira e doutor em viticultura, esse pesquisador da Epamig tem aproveitado as propriedades do clima e de certos solos do Sudeste brasileiro para desenvolver uma vitivinicultura apta para vinhos de qualidade ainda nunca alcançada no Brasil.
Bastou fazer a ligação entre as condições climáticas de inverno da região (pouca chuva, frescor noturno) e as situações ideais para maturação e boa colheita e, assim, apostar na mudança do ciclo da videira – fazendo duas podas anuais, para colher as uvas no inverno. Simplesmente brilhante!
Crescimento mais longo
Dessa forma, o calendário do vinho foi modificado. A poda de agosto é usada para a formação de chifres. A indução da floração ocorre entre setembro e outubro, com excelentes condições (sem chuva e com sol forte). A colheita de verão é abortada após a frutificação. Em janeiro, ocorre a segunda poda para a produção.
Finalmente, a colheita das uvas para os vinhos começa em junho. Murillo de Albuquerque Regina e a equipe dele mostraram que, com a colheita de inverno, o período de crescimento fica mais longo; o potencial alcoólico, maior; os precursores aromáticos e compostos fenólicos, mais numerosos; a acidez, mais preservada; e o rendimento, superior.
Vinícolas premiadas
A dupla poda, também chamada de poda invertida, vem dando muito certo. Tornou o Sudeste brasileiro uma bem-sucedida região produtora de vinho, com algumas vinícolas nos arredores da Serra da Mantiqueira premiadas internacionalmente. É lá que ficam, por exemplo, Guaspari, Casa Geraldo, Maria Maria e Luiz Porto – apenas para citar algumas.
O primeiro projeto de produção de vinhos de inverno foi lançado em 2001, em Três Corações, onde syrah, viognier, cabernet-sauvignon, chardonnay, merlot e sauvignon blanc foram plantadas em 3.300 vinhas por hectare. A syrah e a sauvignon blanc, particularmente, se destacaram pela qualidade alcançada.
Em 2005, a família Guaspari plantou as primeiras vinhas. Hoje, são já 50 hectares, ao lado de 20 hectares de cafeeiros. A vinícola já coleciona dez prêmios. Entre eles, medalha de ouro por dois anos consecutivos no Decanter World Wine Awards, recebida pelo Syrah Vista do Chá (safras 2012 e 2014).
Já o Syrah Vista da Serra, além de receber medalha de prata no mesmo concurso, ganhou duas medalhas de prata com as safras 2012 e 2014 na competição internacional Syrah du Monde, na França, também obtida pelo Vale da Pedra tinto 2016. O mais recente prêmio é a medalha de ouro no Chardonnay du Monde para o Vista do Lago 2016.
Vinho e café
A região nos arredores da Serra da Mantiqueira, com Minas Gerais de um lado e São Paulo do outro, corresponde à área de produção de café localizada nas terras altas do Sudeste do Brasil. No entanto, vinho e café têm coisas em comum. Os vinhedos e os cafezais também.
O bom café, como o bom vinho, apresenta um equilíbrio entre aromas, taninos e acidez. E, para darem os resultados esperados, tanto a vinha quanto o cafeeiro precisam de solos bastante secos, de sol e de frescura noturna durante a maturação. A amplitude térmica promove a concentração de polifenóis e preserva a acidez dos frutos.
O cafeeiro floresce entre setembro e outubro, como a videira, mas o café é colhido no inverno, pois seu ciclo natural é mais longo. Produzir vinhos de inverno significa, portanto, colher as uvas ao mesmo tempo que o café… A sincronização dos ciclos de vida, nesse terroir compartilhado, poderia muito bem ter lançado as bases de uma grande virada na história dos vinhos brasileiros.